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FAMÍLIA MURPHY e o INCIDENTE NO MULTIVERSO

18º Festival em Janeiro Teatro para Criança é o Maior Barato!

Crítica: Família Murphy e o Incidente no Multiverso

Dib Carneiro Neto

São José do Rio Preto

Observo, em tantos anos de crítica teatral voltada para espetáculos infanto-juvenis, o quanto é difícil levar ficção científica para os palcos, sem que pareça arremedo capenga dos avançadíssimos produtos audiovisuais, que sem dúvida nenhuma dominam esse gênero, com a chance de multiplicar efeitos especiais, brincar com flashbacks, reproduzir cenários malucos futuristas. Literatura também sai ganhando. Ler livros de ficção científica nos faz viajar por imagens muito particulares, sem freios, sem limites. Ninguém ganha da nossa capacidade de imaginar o que se descreve em palavras. Mas no teatro fica tudo muito limitado, porque os orçamentos muitas vezes não permitem grandes voos visuais ou porque, mesmo com verba, a criatividade cênica não se realiza de forma eficaz. Fica tudo com aparência de amador, de descuidado. Já vi muitas tentativas no teatro e saí desapontado da maioria delas. Os voos que a dramaturgia tenta dar não se realizam a contento, nem visualmente nem no ritmo narrativo, fazendo a gente ter a sensação de enredo confuso, mal alinhavado, cansativo.

Dito isso, fica mais forte dizer agora que gostei da nova incursão da paulistana Sabre de Luz Teatro por esse gênero. O grupo tem tarimba. Existe desde 2013, ou seja, há dez anos. Demonstram aqui que encararam de frente a ciência, a magia, a distopia, a tecnologia de ponta, o universo dos gamers, o multiverso, enfim, o mundo encantado de pessoas nerds como eles – Joyce Salomão, Cristiano Salomão e Nino Belucci. Criaram um enredo durante a reclusão da pandemia e mergulharam nele para o que desse e viesse. Acertaram.

 

É a história de uma menina de 13 anos que está questionando sua felicidade na família diferente que ganhou: dois pais e nenhuma mãe. Ela é aficionada por tecnologia e ciência, vive querendo inventar traquitanas e engenhocas e até põe fogo na cozinha da casa, para desespero dos dois pais. Por efeito típico desses enredos ficcionais distópicos, ela vai viajar por outros tempos em que havia outras famílias com o mesmo sobrenome dela, Murphy – referência direta ao filme oscarizado Tudo Em Todo Lugar ao Mesmo Tempo. Deseja descobrir a família ideal. Joyce Salomão, com boa mão na dramaturgia e rédea firme na direção, também interpreta essa adolescente. Gosto de ver atrizes maduras fazendo crianças e jovens sem interpretações forçadas, sem vozes infantilizadas ou atitudes clichês. Joyce brilha no protagonismo de sua menina, nos convencendo de suas brejeirices tanto quanto de seus questionamentos próprios da idade.

 

Nessas viagens da garota, há sempre dois homens juntos – o que nos faz entender que toda a sua busca passa por aceitar a configuração de sua família sem mãe presente, só pais. Ela chega a perguntar pela mãe, discute com os pais, diz que sua família não é “normal”, essas coisas saudáveis de adolescente se descobrindo. Sinto falta de mais disso na peça. Mais um pouco do retrato dela com os pais, o cotidiano, as dúvidas, as frustações. Porque, se isso for reforçado, o final em que os três se abraçam e se reconciliam ficará mais forte e com mais emoção.

Destaco aqui a hábil iluminação (Rodrigo Palmieri), sobretudo na plástica cena dos feixes de luz que se deitam sobre o palco. Na cenografia, o uso de gelo seco é esperto, ajudando a instaurar os tempos e as transições. E como não falar da bela e longa cena inicial, uma espécie de videoclipe vivo, com canção pungente de Bjork, retratando – sem palavras – do nascimento da menina até o dia de seu aniversário de 13 anos. Bem feito, forte e delicioso de ver e rever. Se fosse filme, eu apertava a tecla REW.

 

Destaco a força do texto de Joyce Salomão, que tem frases lapidares e diálogos incríveis. “Pilha! Pilha! Pilha”, é uma das repetições engraçadas. A menina tem outro bordão, ao iniciar várias vezes suas frases com a mesma expressão: “No sentido figurado…” Isso funciona muito. Fui anotando frases boas durante o espetáculo: “Não somos feitos de verdades absolutas.” “Estou em busca de coragem.” “Bati a cabeça e estou num sonho dentro de um sonho?” “E se eu estiver presa numa programação?” “Quem é essa simulação de humanóide?” E essa que é sensacional, remetendo ao nome da família da menina: “Lei de Murphy não significa que uma coisa ruim vai acontecer. Significa que tudo o que pode acontecer vai de fato acontecer.” Não é demais? Nos faz sair pensando nisso. E mais uma última: como Joyce Salomão é mãe, soube escrever a definição mais bonita de “mãe” que eu já ouvi nos palcos de teatro – “Ser mãe é ter quatro mãos, ter visão de raio-X e saber dançar o tchá-tchá-tchá.” Que certeiro, que sábio, que senso de humor, que boutade, que uso maravilhoso de metáforas… As mães da plateia se identificam e riem. Objetivo alcançado com sucesso.

Escrito no contexto do 18º Festival em Janeiro Teatro para criança é o Maior Barato!  2024

FAMÍLIA MURPHY e o INCIDENTE NO MULTIVERSO

37º Festivale - 

Crítica: Família Murphy e o Incidente no Multiverso: Ser Aonde For

Amilton de Azevedo

São José dos Campos

Multiverso. Nos últimos tempos, a ideia por trás dessa palavra passou a ser cada vez mais conhecida pelo grande público. Se na virada do século XX para o XXI nos víamos às voltas com obras de ficção que lidavam com aspectos de vidas sendo simuladas nos diversos gêneros do cinema, desde a comédia dramática O Show de Truman (1998) até a ficção científica de Matrix (1999), os anos 2020 parecem carregar consigo a marca da simultaneidade e das infinitas possibilidades.

Ainda que nos quadrinhos o multiverso já esteja presente desde, no mínimo, a década de 1960, é com a expansão do Universo Cinematográfico Marvel (UCM) a partir de sua quarta fase – a Saga do Multiverso – que o conceito passa a habitar cotidianamente as conversas sobre cultura pop.

É nesse chão que Família Murphy e o Incidente no Multiverso se assenta. A Sabre de Luz Teatro (São Paulo/SP) atua há dez anos na criação de obras em diálogo com a ciência e a ficção científica – que versa “sobre o que não existe e sobre tudo o que pode existir”, conforme apontado pelo grupo no bate-papo que sucedeu a apresentação no 37o Festivale.

A peça, para crianças e “crianças acima dos 30”, como brinca a descrição da Sabre de Luz no Instagram (@sabredeluz.teatro), compreendendo o teatro como partícipe e agente da cultura contemporânea, não se acanha ao emaranhar referências diversas, em especial do cinema, na construção de sua aventura pop sci-fi jovem: filmes como A Origem e Dr. Estranho no Multiverso da Loucura são citados nominalmente, do mesmo modo que séries como Stranger Things ao mesmo tempo em que composições cênicas remetem diretamente a Naruto e Star Wars e a trilha sonora utiliza músicas reconhecíveis, de Mortal Kombat à trilhas utilizadas nos trailers de Aves de Rapina e Matrix Resurrections.

A intertextualidade é um recurso interessante de A Família Murphy... por sua capacidade de gerar reconhecimento e identificação, fazendo do público também participante – pois conhecedor daquela gramática – e podendo, a partir da referenciação, explorar seus próprios caminhos mais além do que é citado. Os dados científicos presentes no espetáculo são também explicitados, apesar que a citação ao gato de Schrödinger pode parecer um pouco “solta” dentro da narrativa.

O sobrenome da família, à primeira vista estranho pois estrangeiro, se justifica na ressignificação do ditado popular que diz que “se algo pode dar errado, dará” – para efetivá-la, a Sabre de Luz utiliza uma frase do filme Interestelar, em mais uma referência cinematográfica: “a Lei de Murphy não significa que algo errado vai acontecer. Significa que tudo o que pode acontecer, acontecerá”.

De modo similar ao que temos visto nos últimos filmes do UCM, as razões de ser, o funcionamento e as implicações do multiverso não são exatamente explicados em A Família Murphy e o Incidente no Multiverso. Os modos pelos quais a jovem Ângela (Joyce Salomão) viaja entre os universos parecem mudar; e a resolução final, do retorno, no jogo entre sua representação pixelada na tela e uma versão mais velha e sábia, se desdobra mais enquanto discurso do que ação – o que não se trata, efetivamente, de um problema: a aventura mantém seus mistérios, e certas lacunas também são convites à imaginação do público.

A encenação faz uso de uma série de recursos técnicos para criar a – difícil e pouco vista no teatro – atmosfera sci-fi. Além de recortes ágeis no desenho de luz de Rodrigo Palmieri, o trabalho brinca com lasers na composição de algumas cenas e cria movimentações dinâmicas tanto em coreografias de luta quanto em momentos de transição, aproveitando a já citada trilha e máquinas de fumaça.

Para além do ritmo intenso, da agitação da aventura e dos efeitos imagéticos, Família Murphy... traz também um interessante discurso em sua dramaturgia (de Salomão, também diretora). Em um prólogo que contextualiza o crescimento da jovem Ângela e sua relação familiar, a plateia é apresentada sutilmente a seus dois pais (Cristiano Salomão e Nino Belucci). E, entre outras questões, é a partir da complexidade vivenciada por uma criança cujos pais são um casal homoafetivo em uma sociedade ainda muito preconceituosa que surge o incidente no multiverso.

Curioso notar que em duas produções audiovisuais recentes, extremamente celebradas e premiadas, viagens através do multiverso têm em seu núcleo mobilizador relações entre pais e filhos, entre conflitos e afetividades. Sem entrar em spoilers, considerando que se trata de lançamento deste ano, essa questão surge de algum modo em Homem-Aranha: Através do Aranhaverso; os paralelos nítidos, porém, estão em outra obra. Tudo em todo lugar ao mesmo tempo, vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2022, gira em torno de muitas coisas, talvez a principal delas sendo a relação entre a protagonista e sua filha – e a relação delas com suas versões de outros universos.

O espetáculo da Sabre de Luz e o filme dos Daniels estavam sendo pesquisados e produzidos no mesmo período: a reverberação deste comum é, para o grupo de teatro, a confirmação de uma relevância, de um interesse no tema e nas formas possíveis de abordá-lo. As famílias encontradas por Ângela podem ser tão inesperadas quanto as pessoas com dedos de salsicha e as pedras de Tudo em todo lugar ao mesmo tempo.

Há nas viagens da protagonista de Família Murphy... um jogo interessante também no que diz respeito ao gênero das contrapartes de seus dois pais: em algumas cenas, são um homem e uma mulher, como que na afirmação de que configurações diversas não apenas podem existir como de fato existem.

Na distensão dessas possibilidades, de robôs a alquimistas interessados em dissecar cérebros, Família Murphy e o Incidente no Multiverso brinca com maneiras de materializar o impossível da ficção científica nos palcos teatrais, navegando no imenso oceano de referências da cultura pop contemporânea sem perder de vista a autoralidade de sua criação. Por trás de saltos entre realidades, lá está o que há de mais central no trabalho da Sabre de Luz: quem somos, quem podemos ser, com quem podemos contar e quem desejamos amar.

Amilton de azevedo é crítico e professor de teatro. Atualmente é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da ECA-USP, desenvolvendo pesquisa em torno da crítica teatral contemporânea no Brasil. É mestre em Artes da Cena pela Escola Superior de Artes Célia Helena, onde lecionou entre 2016 e 2019. Criou a plataforma ruína acesa (https://ruinaacesa.com.br) em 2017, onde publica regularmente textos sobre teatro. É membro da seção brasileira da IATC/AICT (Associação Internacional de Críticos de Teatro).

Escrito no contexto do 37º Festivale - Festival Nacional de Teatro do Vale do Paraíba, de 7 de setembro de 2023

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